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Enslaved – Carioca Club – 31/03/19
Postado em 27 de maio de 2019 @ 19:27


Texto: Vagner Mastropaulo

Fotos: Diego Camara / Fernando Yokota

Basalt prega união e Enslaved une estilos em seu caldeirão de influências

“Quando começamos em 1991, nós, como qualquer outra banda, precisávamos ter um ângulo sobre o que estávamos fazendo. Mas o lado satânico não combinava conosco. Sentíamos que precisávamos fazer algo que defendêssemos 100%. Grutle e eu estávamos tentando encontrar esse consenso e chegamos a um fascínio comum pela mitologia nórdica”. Assim falou Ivar Bjørnson, não no Carioca Club, mas nos extras de Metal – A Headbanger’s Journey, o ótimo documentário lançado por Sam Dunn em 2005. Com vinte e oito anos de carreira e quatorze full lengths desde 1994 (dos quais apenas dois passam de uma hora: RIITIIR, de 2012; e E, de 2017, o álbum da turnê, e só porque traz duas bônus tracks), não restam dúvidas de que o Enslaved é um dos conjuntos mais prolíficos do Black Metal, mesmo com alguns dizendo que façam Progressive Black Metal e eles próprios se classifiquem de modo distinto no about em seu perfil do Facebook: “Metal extremo com uma pitada progressiva e melódica”.

Com as cinebiografias em voga (o mais novo filão de mercado rock/metal), Lords Of Chaos surgiu entre Bohemian Rhapsody e The Dirt (sobre o Mötley Crüe e febre na Netflix), reaquecendo a polêmica da cena norueguesa extrema. Mas não dá para colocar no saco de quem queima igrejas o grupo formado em Haugesund e depois estabelecido em Bergen, terra natal de Varg Vikernes, do Burzum, Immortal, Taake e Borknagar. E coube ao Basalt abrir a noite pontualmente às 19:00, com a casa ainda vazia, mesmo após uma promoção reduzir em 50% o valor do ingresso, para R$60,00, podendo trazer um amigo quem tivesse adquirido a entrada a R$120,00. Dando seu melhor o quinteto paulistano formado em 2015 e hoje integrado por Marcelo Fonseca (vocais), Leonardo Saldiva (baixo), Victor Miranda (bateria) e Pedro Alves e Luiz Mazetto (guitarras) – este autor dos ótimos dois volumes de Nós Somos a Tempestade – fez set de trinta e cinco minutos e sete músicas de som autoral cantado em português. Nada de Atlântico (2017), o split com o Redemptus, foi incluído e a apresentação começou pelas duas primeiras de O Coração Negro Da Terra (2016). Além delas, cinco inéditas que estarão em Silêncio Como Respiração, atualmente “em fase de mixagem e masterização”, conforme confidenciado pelo atencioso vocalista à nossa equipe em contato por email, com maiores detalhes: “Deve sair até o meio do ano pela Ritual Productions, selo inglês com quem assinamos recentemente”.

Ciente de seu papel, Marcelo fez um discurso contundente após Melancolia, terceira do set: “Queria agradecer a todo mundo que veio. É muito foda poder compartilhar o espaço com um monte de gente que talvez nunca tivesse visto a gente. Você abre o noticiário e a data de hoje não deveria, mas suscita emoções acaloradas em parte da sociedade. E um bagulho que fica na minha cabeça é o seguinte: em 1985, quando estávamos tendo nossa abertura democrática, eu tinha doze anos, já gostava de som e tinha amigos mais velhos que levavam tapa na cara de policial por ter cabelo comprido e porque ‘gostar de rock era coisa de vagabundo’. Mas se você curte um estilo alternativo, você deve: gostar de visões plurais de sociedade; entender as pessoas como diferentes; e entender as pessoas com visões políticas, sociais e de comportamento diferentes da sua. A todas as pessoas que estão usando uma camiseta preta e que estão, de alguma forma, compactuando e curtindo essa música extrema que a gente faz, nós todos temos o compromisso de ser o desviante, não a regra. A gente tem que ser o caminho de fora (…) e para toda pessoa que está comemorando esta data, pau no cu de todos vocês”.

No decorrer de sua manifestação, o som de seu microfone teve sensível melhora, sendo, a partir de então, possível ouvi-lo mais claramente ao usar sua voz praticamente como mais um instrumento, tamanha a agressividade imposta. Antes, a impressão que se tinha era que chegava na pista somente o som direto dos retornos de palco. Terminada a apresentação, o comportamento de um ‘fã’ destoou ao reclamar do Doom/Black Metal da banda, enquanto Marcelo, aplaudido, agradecia e divulgava o lançamento do próximo álbum para “até o meio do ano”. O fato foi que o cantor foi abruptamente interrompido pelo valentão, provavelmente ébrio e atingido por suas palavras, a misturar as bolas e gritar: “Chupa PT”. Em tempo: esta foi a única menção partidária na noite, pois ninguém estava defendendo partido político algum. Marcelo apenas havia feito alusão às perigosas e tristes celebrações do Golpe Militar de 1964 e a atitude mal-educada de quem apenas buscava quinze segundos de fama (minutos seriam um luxo) só foi aqui relatada para reafirmar o discurso de união do cantor e alertar contra excessos. Curtir uma banda e/ou um show (ou não) é um direito de cada um, mas ao ser deselegante, nosso ‘amigo’ deu provas irrefutáveis de total incompreensão das falas de Marcelo.

E as coisas só pioraram quando outro fã o chamou de fascista (baseado em que?) e o primeiro infeliz mostrou recalque ao perguntar se o segundo era da USP (qual a relação?). O argumento vociferado foi: “Eu paguei para ver o Enslaved”, como se a ausência de uma banda anterior fosse acelerar a vinda dos noruegueses. Em meio a tudo isso, outro ‘fã’ resolveu dar apoio, puxando papo com este escriba: “Em um ponto ele tem razão: essas bandas nacionais de abertura só enchem o saco”. Com a casa vazia, a solução teria sido simples: uma rápida pesquisa dos horários de palco e entrada posterior. Assim o Basalt não teria ‘irritado’ os sensíveis ouvidos destes ‘fãs’, que não teriam feito os ouvidos alheios de penico e o esquenta mais barato do lado de fora com os amigos estaria garantido. Só vantagens! Agora fica a cargo de os leitores tirarem suas próprias conclusões…

Provando ser um cara da paz, Marcelo preferiu focar em outras questões no referido contato por email, como ao esclarecer que Circumspice, a última do set, vem do latim e “significa algo como ‘olhe ao redor’. A letra trata da necessidade de se criar ídolos e existe uma razão histórica e intencional para isso: ‘ídolos’, ‘heróis’, ‘campeões’ são categorias e são inventados desde o início da humanidade com a intenção de dar coesão social, criar mitos patrióticos e turbinar idéais nacionalistas. O que muito se esquece  é que os ditos ‘heróis’ foram responsáveis por muitos massacres e trouxeram mais destruição do que progresso. Eu trabalhei em uma editora no centro e, sempre que passava próximo à estátua do Duque de Caxias, me lembrava que esse ‘patrono’ foi um assassino que dizimou praticamente toda a população do Paraguai. No fim das contas, os ‘heróis nacionais’ existem para que uma porção de iludidos e enganados seja arrastada para a morte e o sofrimento. Os ricos não travam guerras, usam os filhos dos pobres para isso”. Perguntado sobre Dasein, também mostrada ao vivo, o vocalista explicou que o título “é um termo alemão que remete à existência, o ‘ser-aí’ ou ‘ser-aí-no-mundo’. A letra discute o imediatismo dos nossos dias, onde muitos pretendem mais ‘ter’ do que ‘ser’ e o pouco esforço intelectual de pensar sobre essas questões. Acredito que quando a noção de individualidade está confusa e o indivíduo é mais ‘consumidor’ do que ‘cidadão’, temos um problema existencial profundo”.

Marcelo também revelou como se deu o breve o contato com o Enslaved: “Coisa de camarim. De minha parte, uns cumprimentos, tipo “Oi, tudo bem?”. Os outros caras da banda papearam um pouco mais. Me passaram uma imagem de serem caras bem tranqüilos, na deles. Foram gentis, assistimos às passagens de som de um e de outro e os bateristas trocaram peças para usar. Ali no limite da gentileza, educação e de que todo mundo está no mesmo espaço, pelo som e para dar o melhor de si naquelas horas. Depois de nossa apresentação rolaram uns cumprimentos. Foi bem tranqüilo”. Finalizando o papo, deixou declaração oficial sobre o evento, voltada aos fãs: “Muito obrigado pelo espaço, pela cobertura e interesse pela banda. Apóiem as bandas independentes, compareçam aos eventos pequenos, escrevem, leiam e façam música. Não existe tempestade que não passe e nem verdades absolutas”.

Também em ponto, mas às 20:00, e retornando a São Paulo e ao Carioca Club após estréia em solo nacional como headliner da quarta edição do Overload Music Festival em setembro/2017, havia chegado a hora de o Enslaved vir palco com os citados Grutle Kjellson (vocais guturais e baixo) e Ivar Bjørnson (guitarra), e Håkon Vinje (teclados e vocais limpos), Iver Sandøy (bateria) e Arve Isdal (guitarra), posteriormente apresentado como por Grutle Ice Dale. De cara, um efeito visual interessante para quem assistia, mas um terror para os pobres fotógrafos que lutavam pelo melhor registro: só contra-luz na casa, a pedido dos noruegueses. Decorando o fundo do palco, a capa de E, que também trazia traços artísticos nos bumbos de Iver. Fugindo ao padrão, a parte posterior do palco não trazia a bateria centralizada e sim à esquerda de quem os via, com os teclados à direita. À frente, a disposição comum para guitarristas e o baixista/vocalista. Ethica Odini, única do álbum quase homônimo, abriu o show, com alguns fãs curiosamente cantando apenas as partes limpas feitas por Håkon. Seu final, praticamente em fade out, ressaltou o estágio evolutivo na sonoridade do conjunto, possibilitando transição natural entre canções, como feito para Roots Of The Mountain, única de Riitiir (2012) no set, mesclando agressividade e arranjos melódicos, simbolicamente unificados nos vocais de Grutle e Håkon, até seu final.

Com presença digna de público ao menos digna na casa, sem enchê-la, e com galopante começo de baixo e belo instrumental, Ruun representou o álbum homônimo após Grutle dar boa noite, perguntar como todos iam, se estavam prontos para um pouco de “hard rock norueguês” e afirmar que a faixa era sobre “caos interno e no cosmo”. Mais acessível, ela botou a galera para dançar e se você pensa ser loucura conceber fãs dançando ao som de Enslaved, tudo faz sentido, pois conforme revelado por Ivar em entrevista para o repórter Greg Kot, do Chicago Tribune, em 15/02/18, “Recordo-me de escrever a maior parte de Ruun quando eu trabalhava em turnos da noite como guarda em uma ala psiquiátrica”. Após brindar em sueco gritando “Skål” (em norueguês seria “Jubel”, de acordo com a segura incerteza do Google Tradutor) e prosseguir com um “Salud”, Grutle foi um pouco mais eloquente: “Estão prontos? Esta é uma bela noite de domingo, perfeita para festa e rock pesado”. E o álbum da turnê voltou à pauta em The River’s Mouth, curiosamente grafada como The (R)Iver’s Mouth no setlist de palco, em provável trocadilho com Iver.

Então foi feita a alegria dos fãs mais old school a partir de Frost, rolando no som ambiente como intro para quatro faixas do álbum de 1994, sob luzes predominantemente azuis, a começar por Loke. Antes de Fenris, verdadeira paulada, Grutle verificou se todos estavam preparados para material antigo: “Se estiverem, vão adorar esta, que é sobre The Big Bad Wolf. Então sempre tenham em mente…” e recitou a parte introdutória do registro de estúdio. Um pouco mais lenta do que no play, Gylfaginning surgiu com uma revelação: “Na verdade, ontem foi a primeira vez que tocamos esta no Brasil, em Novo Hamburgo, mas tenho certeza que vocês podem fazer melhor do que aqueles ‘sulistas’, ou seja lá como vocês o chamam. Vamos enlouquecer?”. Por fim, quebrando o gelo antes de encerrar a parte de Frost, o vocalista tirou sarro, mostrando respeito e conhecimento de metal nacional antigo: “O resto do set será exclusivamente de antigas covers do Sarcófago”. Só que, ao transformar o nome da banda em uma paroxítona, ninguém captou a piada, restando explicar que Isøders Dronning era “sobre uma rainha que mora em Ice Desolates” (em menção à tradução do título para o inglês: Queen of the Ice Desolates), com luzes azuis projetadas apenas sobre Ivar, que belamente a encerrou.

Trocando não só de álbum, mas também as bolas, Grutle cometeu gafe icônica, gerando um auto-spoiler: “Queridos amigos, sei que estavam esperando por isto há bastante tempo. Esta é uma música do álbum Haven… Não, ele não se chama Havenless. Seu título é Below The Lights. Talvez eu tenha dito ao contrário, mas me referia ao título… então, é claro que já estraguei tudo, a propósito, mas a próxima se chama Havenless”. O que importou foi que deu tudo certo em sua execução e seu início soou fantástico, marcado pelo gestual dos músicos erguendo seus braços espaçadamente, com as mãos fechadas, inclusive por Iver (marcando o compasso no bumbo), mas não por Ice Dale (alguém tinha que trabalhar e fazer o riff para puxá-la) e parcialmente pelo confuso vocalista (com seus dedos abertos, não ficou claro se a coreografia era assim mesmo ou ele seguia atrapalhado). Destaque para sua interessante convocação a marchar, simbolizada pelas batidas em sua metade.

Finalizando a parte pré-encore e sem confundir-se desta vez, Grutle foi assertivo: “São Paulo, vamos encerrar esta noite maravilhosa com um pequeno conto de mitologia nórdica. Esta é sobre um casamento e se chama Sacred Horse”, descrita na edição de outubro/2017 da revista inglesa Metal Hammer como “a canção que se tornaria a peça central de E (…), pois Ivar começou a notar cavalos para onde quer que olhasse, algo que se tornou um dos pilares de força da banda”, algo que, segundo Ivar, na mesma matéria, aconteceu graças a “uma questão de sincronismo – aquele maravilhoso mecanismo de quando nosso subconsciente foca em uma coisa e você começa a vê-la em todos os lugares”. E a versão em inglês do Wikipedia foi além, juntando todos os pontos: “O título do álbum representa a letra inicial do nome da banda, mas escrito com o caractere rúnico ‘ehwaz’ (semelhante ao ‘M’) na arte minimalista e em madeira escura do encarte do álbum, criada pelo designer e pintor Truls Espedal. O conceito do símbolo (que significa ‘cavalo’) é tratado em Sacred Horse, de certo modo”. Depois disso tudo, só resta dizer que a música teve final simplesmente apoteoticamente cavalar…

Håkon foi o primeiro a regressar ao palco, agradecendo em português, mas o solo foi de Iver. Ritmado, em vez de socar incontáveis notas por segundo, o músico mostrou apuro técnico, encorajou a participação da platéia e ainda pediu pela continuidade das palmas. Aproveitando o clima amistoso, Grutle apresentou a banda revelando que Ice Dale “costumava ser um excelente jogador de futebol, o Ronaldinho norueguês” (não há como saber se é verdade e a qual Ronaldo ele foi comparado). Engraçadinho, o vocalista descreveu Ivar como “o homem que acidentalmente inventou o marshmallow enquanto lavava seus cabelos” e, na zoeira, o guitarrista retribuiu o carinho puxando o riff inicial de Powerslave em seu instrumento. Terminando as gracinhas, Grutle foi apontado como “o homem que fez todas as canções em todos os filmes mudos dos anos 20”. Voltando a por ordem na casa, o vocalista descreveu a penúltima: “Faremos uma que todos conhecem”, sendo interrompido por um ansioso fã a gritar “Isa”. Calmo, o frontman brincou: “Não estrague as coisas. EU devo anunciar”. Finalizando, discorreu sobre o evento: “Este é nosso último show do giro latino-americano e foi uma noite fantástica. Querem mais antes que os deixemos?”, para então agradecer aos membros da equipe e dedicar Allfǫðr Oðinn, do EP Hordanes Land (1993) e mais antiga do set, “basicamente a todos no recinto”.

Encerrada a apresentação de quase uma hora e quarenta minutos, enquanto a descontraída Care Of Cell 44, dos ingleses do The Zombies rolava pelo Carioca Club, a tradicional foto foi tirada e fechou-se a cortina. Ao fotografarmos o setlist entregue a um sortudo fã, algo saltava aos olhos: cada canção tinha um número ao seu lado, possivelmente seus bpms (deixaremos as marcações no setlist abaixo, como curiosidade). Fechando esta matéria, lembra-se da declaração de Ivar em Metal – A Headbanger’s Journey reproduzida no início do texto? Sua participação final no documentário ressaltou coesão, complementando fala de Grutle sobre o conceito lírico da banda ser baseado na mitologia viking: “Para mim é bom tema porque me faz sentir ancorado, de certo modo, arraigado. Não estou nisso porque é melhor do que outra coisa, ou me faça me sentir superior, ou algo assim. Apenas faz com que eu me sinta conectado a algo. Especialmente quando estamos cantando para o público, te dá uma sensação especial de pertencer a algo”. Um bom resumo para uma noite de união em torno de sonoridades extremas, mesmo que uns e outros não entendam e insistam em caminhar em sentido oposto.

 

Setlists

Basalt

01) Párias

02) Terra Morta

03) Melancolia

04) Anamorfose

05) Silêncio Como Respiração

06) Dasein

07) Circumspice

 

Enslaved

01) Ethica Odini (146)

02) Roots Of The Mountain (143)

03) Ruun (130)

04) The River’s Mouth (145)

  1. xx) Frost [Utilizada como Intro]

05) Loke (166)

06) Fenris (140)

07) Gylfaginning (128)

08) Isøders Dronning (100)

09) Havenless (86)

10) Sacred Horse (165)

Encore

11) Drum Solo

12) Isa (132)

13) Allfǫðr Oðinn (134)

  1. xx) Care Of Cell 44 (The Zombies) [Utilizada como Outro]
 
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