Transcrição por: Vagner Mastropaulo
Fotos: Flavio Santiago
Oficialmente marcada de 16:30 às 17:00 e com Nasi e Edgard Scandurra, o bate-papo se iniciou às 16:42, durou dezoito agradáveis minutos e trouxe, de bônus, Johnny Boy e Evaristo Pádua. Embora o baixista e o baterista estivessem presentes, evidentemente, as perguntas ou eram endereçadas aos dois primeiros ou o vocalista e o guitarrista automaticamente assumiam as interações para si. A mediação ficou por conta de Gastão Moreira, que abriu a série de perguntas logo após os quatro terminarem seu show no Best Of Blues And Rock:
Gastão Moreira: Vocês lançaram um ótimo disco em 2020, infelizmente veio a pandemia, que nãopermitiu a turnê, e aposto que está todo mundo com sangue nos olhos. Fui ver a agenda de vocês, um monte de shows daqui para frente, então pergunto: é bom voltar para a estrada?
Nasi: Na nossa vida, posso falar pelo Edgard e ele pode complementar: nós montamos uma banda para estar na estrada. Foi assim antes de existir o Ira!,o Edgard com o Subúrbioe tentando desbravar pequenos lugares para tocar no início de nossa carreira. Então, na nossa vida, na verdade, a gente lança discos para entrar em turnê, por mais que hoje o disco esteja meio fora de moda, infelizmente. A gente lançou um álbum, o conceito de álbum, músicas que têm a ver umas com as outras, que cabem no formato do vinil. Então a gente tem esseobjetivo.
Edgard Scandurra: É importante para a gente gravar um disco. Infelizmente veio a pandemia, que esbarrou em vários planos da gente, mas foi importante para registrarmos também essa nova formação da banda com Johnny Boy e Evaristo Pádua. Até então, a gente retornou depois de um hiato enorme do Ira!, uma separação,e, quando voltamos, viemos com uma nova formação e então é importante esse disco para ter este registro porque é muito difícil, hoje em dia, numa banda com mais de quarenta anos de estrada, você fazer um disco novo. Você acaba concorrendo com você mesmo, com seus próprios sucessos de anos e anos na estrada, os gloriosos anos oitenta, os anos noventa. Então é muito complexo, mas é legal, mais como registro desta formação muito legal que a gente tem hoje.
Gastão Moreira: Vocês vão incluir as músicas do disco novo também nos shows?
Nasi: A gente já está incluindo, né? Eu até aproveito, só pegando um gancho assim: para quem acompanha o Ira! sabe que nossas grandes influências são The Who, The Clash, The Jam…
Edgard Scandurra: Jimi Hendrix!
Nasi: Anos sessenta e setenta. E o The Who lançou um disco no mesmo ano que o Ira!,foi engraçado: o décimo terceiro disco do The Who, depois de doze anos, e a gente lançou o décimo segundo, depois de treze anos – uma coisa bem engraçada [nota: de fato,IRA (20)sucedeu Invisível DJ (07), mas Who (19), décimo segundo play dos ingleses, veio após EndlessWire (06)]. Esse último disco do The Who é bom pra caramba e o Roger Daltrey, recentemente numa entrevista, deu uma declaração. Perguntaram se ele tinha planos para fazer um novo disco e ele falou assim: “Não! A gente gravou esse disco faz dois anos, ninguém se lembra das músicas. As pessoas só querem as músicas velhas, então não gravo mais discos”.Tem um pouco disso, a gente também grava cover, também pode preparar um disco solo, o Edgard também vive com outros trabalhos paralelos e solos, mas eu ainda, e creio que o Edgard também: nós ainda somos artistas que gostamos de fazer discos! Não vamos fazer singles só, né? Nós gostamos de ter um disco, um conceito.
Edgard Scandurra: O conceito de um álbum, né?
Como nem todos os colegas repórteres se identificaram ou informaram seus veículos, optamos por simplificarresumindo os assuntos abordados. Ocasionalmente, Gastão pediria novamente a palavra e, nestes casos, deixaremos sinalizado:
Pergunta 1 – a respeito das plataformas de streaming e a relação da banda com essa nova era; e sobre como se sentiam em relação à importância de estarem na décima edição do festival:
Edgard Scandurra: Vou começar pelo festival: ele é maravilhoso, com representantes de uma cena tão ampla. Quando você diz blues, você automaticamente incorpora o jazz e o rock, e o rock abre espaço para tantas subvariantes. Então é muito legal um festival desses. Eu, particularmente, lamento não ser um festival público, aberto para todas as pessoas que freqüentam o Ibirapuera terem acesso ao festival, que tragam suas bicicletas, se deitem no gramado e viajem ao som de Tom Morello, sabe? Acho que seria uma coisa bem legal. Sobre os streamings, é muito bacana! A gente tem que se equilibrar sobre as novas vias, as novas formas de ouvir música. Tudo é uma coisa que já é uma realidade, pelo menos há uns vinte anos a gente tem essa música vinda do computador, das nuvens, do download – todas essas coisas, né? Gosto muito de ouvir música de tudo quanto é tipo: da fita cassete ao vinil e ao radinho, de onde vier está bom e, para mim, essa mídia digital é mais uma delas.
Nasi: Uma coisa que tem que ser dita e debatida é a questão do pagamento que os streamings fazem aos artistas. É péssimo, entendeu? É nada! A gente até brinca e fala: “A gente criticava tanto as gravadoras…” – e realmente criticávamos! Pô, a gente não tinha a medida de todos os discos que vendíamos, mas, cara, eles bancavam nossas viagens, nossos estúdios, nossos produtores, entendeu? Hoje, essas plataformas, esses nerds do Vale do Silício, que já estão lá com seus cinqüenta anos, têm bilhões, entendeu? Recentemente o Paul McCartney estava tentando fazer um movimento na Inglaterra para pressionar o parlamento inglês a rever os pagamentos porque é um absurdo! Gente, como é que uma pessoa hoje vai nascer, crescer, pegar um instrumento e falar: “Vou ser compositor!” ou “Vou ser um instrumentista!”?. Não tem nada, entendeu? Então isso precisa ser revisto. É óbvio que tem a democracia, ninguém vai tirar esse valor, essa acessibilidade que o streaming dá às bandas. Hoje os artistas não precisam mais dos filtros que a gente precisava, de rádio, de gravadora, que iam aprovar seu trabalho ou não. Mas, também desse jeito, não é legal.
Pergunta 2 – referenteà visão de alguns a respeito de o Ira! ser “paulista demais”:
Nasi: Nós gravamos os três primeiros discos no Rio de Janeiro com grandes pessoas, amigos.
Edgard Scandurra: [rindo] Nós somos cariocas, pô!
Nasi: Mas sempre tinha essa coisa, cara… A gente gravou o Vivendo E Não Aprendendo, teve uma coisa, eu acho, e aí vou falar uma coisa séria: sempre teve uma má vontade com o Ira! nos anos oitenta porque a gente não fazia jabá. A gente não ia ao subúrbio do Rio de Janeiro para tocar de graça para o Chacrinha, entendeu? Diferente de várias bandas da nossa geração, a gente construiu nossa carreira contra a maré. Aí eles tocavam pouco a gente no rádio e diziam: “Ah, eles são paulistas demais!”, como se isso fosse um problema, cara! A gente nunca foi assim, somos artistas do Brasil.
Edgard Scandurra: Toda banda nova, nos seus primeiros discos, carrega muito o sotaque da cidade onde mora, isso é meio natural. A Elis Regina, quando começou a cantar, tinha um sotaque muito forte do Sul, gaúcho. E ela foi, com o tempo, transformando seu sotaque num sotaque nacional, brasileiro. Acho que isso acontece com todos os artistas, começam com aquela coisa regional de sua cidade e depois se torna um sotaque nacional.
Nasi: Assim como os artistas do Rio têm sotaque carioca, do Paraná, o pessoal do Manguebeat, isso é normal. Mas parecia que, na época, isso era desculpa: “Ah, o Ira! não pode tocar muito porque não faz jabá? Não! É porque eles são ‘muito paulistas’”.
Gastão Moreira: Nasi, eu me lembrei do Nasi E Os Irmãos Do Blues. Buddy Guy era um dos favoritos ou não?
Nasi: Sim, sou fã do blues de Chicago, aqueles caras não queriam o Buddy Guy saindo para o Mississipi e, na verdade, ele foi um dos pais do rock ‘n’ roll, né? Inventaram o blues elétrico, Muddy Waters, Howlin’ Wolf, o pessoal da Chess Records e Buddy Guy eletrificaram o blues e esse foi um passo para vir o rock ‘n’ roll. Uma coisa é verdade: nós estamos aqui, em parte, artistas como o Ira!.
Gastão Moreira: Vocês estão lançando agora em vinil as Demos 83-84. Para lançá-las, vocês devem ter feito uma revisitada na história da banda. Vocês vêem muito elo entre aquele começo da banda e o que vocês estão fazendo hoje em dia?
Nasi: Antes de passar para o Edgard, vou falar: esse não é um projeto inicialmente do Ira!, foi da Nada Nada Records.Eles que tomaram essa iniciativa,o Edgard foi o cara que acompanhou isso bastante mesmo.
Edgard Scandurra: Sim! Foi um projeto, esse é um selo muito interessante que tem em São Paulo, um cara que é muito voluntarioso, o Mateus Mondini, da Nada Nada Records. Ele pega projetos e o último lance dele foi com os Agentss, projeto de música eletrônica vanguardista lá do comecinho dos anos oitenta. Então ele lançou um vinil duplo com ensaios e fez a mesma coisa com o Ira! também, mesmo As Mercenárias também. Ele é um cara que vai garimpando – essa é a palavra! Ele garimpa coisas muito legais e lançou esse disco, que é muito interessante e junta duas coisas: para quem gosta de coisas retrô, são shows do Ira! em 1983-84; e para quem gosta de vinil, é um vinil excelente, com uma qualidade muito boa! Sou desse time aí do vinil, sei que é uma pequena bolha, mas adoro.
Nasi: E que foi assim, um trabalho, como falei: eles que tomaram a iniciativa e a gente ajudou na pesquisa. E o que foi bacana aqui, acho que sempre faltou, sempre teve esse buraco na discografia e na história do Ira!, que foi aquela formação com o Dino e o Charles Gavin e que só gravou o primeiro compacto [nota: IRA (84)], mas que tinha uma história de músicas e um som. Era a época do Ira! pós-punk, nervoso, uns caras muito doidos [rindo]. O Charles saiu do grupo pensando: “Esses carecas aí são muito doidos. Deixa eu achar uma banda que dá mais sucesso!” [rindo], entendeu? E foi muito bacana porque, se não tivesse esse trabalho, ninguém ia ter conhecimento daquela fase de dois anos do Ira! que foi muito legal com o Dino, nosso amigo do Colégio Brasílio Machado, baixista, e o Charles, né?
Edgard Scandurra: E temos aqui Evaristo Pádua, nosso baterista, grande cara! E Johnny Boy, cara incrível! Músicos maravilhosos que estão com a gente aí na estrada, dia e noite, noite e dia.
Nasi: O Johnny é uma página do rock nacional, multi-instrumentista.
Johnny Boy: Obrigado, Ira!.
Nasi: Deviam fazer um documentário sobre o Johnny!
Johnny Boy: Obrigado, Ira!. Um grande prazer tocar em São Paulo. Esses caras, quando falam, falam toda a história que a gente quer ouvir, né? Uma grande honra estar ao lado destas feras como o Edgard, o Nasi e o Evaristo também. Um grande prazer e uma responsa fazer esse show para vocês. O Ira! se preparou muito, não foi qualquer show, não. Grande prazer! Ira!,nossa vida no rock ‘n’ roll aí! Obrigado!
Pergunta 3: com relação às músicas “lado b” tocadas no show e referências entre bandas “lado b” para o grupo:
Edgard Scandurra: Tem uma cena toda! Quando a gente surgiu, no começo dos anos oitenta, vindo do punk rock e do pós-punk, havia muitas bandas importantes que também surgiram contemporâneas à gente e são importantes para o nosso som, como o Voluntários Da Pátria, banda do Miguel Barella, um excelente guitarrista que é uma referência para mim, e que também tocou na Gang 90, banda pioneira nessa cena e em que tive o prazer de tocar também. Poder acompanhar os primeiros shows deAgentss, Thomas Pappon, a gente tinha aquela cena do Lira Paulistana com Itamar Assumpção e Arrigo Barnabé. Tem uma galera muito legal do nosso começo, dessa vanguarda paulistana, mesmo os punks da periferia toda de São Paulo, o pessoal aí do Inocentes, do Cólera, banda fabulosa, maravilhosa. O Redson já pensava em ecologia, ecossistema e poluição nos anos oitenta, as letras são super atuais. Essa turma toda, a gente andava lado a lado com eles, então são referências e influências para a gente também.
Nasi: Costumo dizer que o Ira! é o elo perdido entre o alternativo underground e o mainstream. A gente é mainstream dentro da cena independente (e a gente tem muito trabalho independente), e a gente é alternativo quando a gente chega ao cenário mainstream, né? Isso é bacana, acho que o Ira!… Por isso também foi bacana essa edição que a Nada Nada Records fez das Demos 83-84. Então acho que o Ira! resgata, mesmo dentro de festivais e cenas mainstream, a gente carrega isso do alternativo, da estranheza, entendeu? Isso é a gente.
Gastão Moreira: Muito bom, gente! Vamos ter que encerrar nossa coletiva de imprensa.Queria agradecer ao pessoal do Ira!. Muito obrigado! Valeu!